
Franca Vilarinho — jornalista e fotógrafa
Partimos de Brasília a bordo de um velho jipe repleto de doações — barraca, fogão e utensílios de cozinha. Era novembro de 2017. Após muitos anos, eu voltava ao Vão de Almas, na terra kalunga. O o é complicado, com serras íngremes, separadas por três rios. Enfrentamos a poeira e o suor da seca. Mas a vontade de retornar era intensa. O encontro com o guia foi calmo. Casado com uma kalunga, ele conhecia bem a região. A conversa estava animada, mesmo sob o calor escaldante.
Enquanto o jipe atravessava o Cerrado, ouvíamos histórias do Vão de Almas. A poeira levantava-se. Árvores retorcidas surgiam diante de nós. Segundo o guia, o nome do Vão foi dado porque, no ado, os habitantes viviam isolados, evitando ser vistos. Como estavam entre serras, com muita luz intensa e sombras, quando avistados, pareciam assombrações. ei a olhar os morros com mais atenção, imaginando as silhuetas fugazes entre raios de luz. Isso me fez lembrar das impressionantes fotografias de Sebastião Salgado. Cenário ideal para suas obras.
Pausa para uma prosa. Na casa simples, chão batido, cavalos na porta, galinhas no terreiro, um jovem professor nos contou sua rotina. Saía de casa em motocicleta e seguia até um riacho. Deixava a moto na margem e cruzava de canoa. Dava suas aulas e voltava pelo mesmo caminho. Ninguém mexia na moto. Quando chovia, não tinha aulas. Em outra moradia, uma cena chocante: dois meninos brincavam de carrinho. Mas o carrinho era um simples eixo com duas rodinhas de plástico. Ali a vida, com pouco, parecia abundante!
Chegamos à margem do Rio Paranã e encontramos uma simples canoa que nos deixou apreensivos, mas a vista era incrível! amos a noite na casa da cunhada do guia, onde fomos acolhidos de forma calorosa. Deram-nos o melhor que tinham. Jantar delicioso. A conversa rolou até tarde.
De manhã, seguimos pelo chão batido do Vão de Almas. Vimos casas cobertas de palha, homens a cavalo, com chapéus de palha e chicotes. Em cada residência, recebíamos cumprimentos, ofertas de café e olhares curiosos. Visitamos Dona Procópia, mulher forte e sábia. Ainda conhecemos uma dona que realizava os "casamentos de fogo". O padre vinha raramente e, a pedido dos jovens apaixonados, delegava o poder de celebrar casamento para ela, numa cerimônia em volta a uma fogueira. Dormimos novamente na casa da cunhada e nos despedimos levando um baú de histórias. Pegamos a canoa de volta.
Era um dia de sol. Todos contentes, repletos de lições e novas amizades. Vimos ao longe uma enorme serra. Seguimos. Havia um riacho no meio do trajeto. Parecia raso, mas não. Dá-lhe, bandeirante! O velho jipe não resistiu, atolou-se no meio do rio, enchendo-se de água. Eram 9 horas.
E agora? Bem perto, encontrava-se a mais alta montanha da região. Apavorados, tentamos tirar o jipe. Não conseguimos. Alguns moradores apareceram para ajudar. Era muito difícil, até para homens tão robustos, vencedores de tantas batalhas nas severas condições do Cerrado.
Tivemos boa notícia: o caminhão da Prefeitura de Cavalcante, que vinha uma vez por mês, por coincidência, milagre ou conspiração dos orixás, aria justamente naquele dia. A esperança encheu o coração! Nos acomodamos. A comunidade foi chegando, trazendo trouxas e produtos para vender na cidade. Uma mulher com um filho enfermo demonstrava angústia. Era seu caçula. Sem remédio, tinha que consultar um médico. O jeito era esperar! E o tempo ando devagar…
Às cinco da tarde, ouvimos o som de um motor. Expectativa na beira da estrada. O caminhão chegou, repleto de gente. Alguns desceram e ele seguiu em frente. Ao retornar, puxou o jipe. Exausta e com muita fome, percebi a realidade dura do sertão. Era o século 21, mas naquele dia me sentia como se estivesse num ado conhecido apenas em livros. Local sem asfalto, comunicação ou internet, de moradores sofridos, mas solidários, apesar de tudo.
Para pôr o carro na caçamba, tiveram que formar um barranco com enxadas. Ao escurecer, o jipe e as pessoas, apertadas, dividiam a carroceria. Leve chuva começou a cair. Mulheres na parte de trás da carroceria rezavam, os jovens subiram no teto da boleia. Viajamos em pé, agarrados na lateral. Os tecidos brancos que cobriam suas cabeças lembravam Canudos. Chegamos a Cavalcante, às 3 horas da madrugada, acabrunhados, tristes e cansados. Nos despedimos, agradecendo e pedindo desculpas.
Naquele dia não fotografei. No dia seguinte, ainda sentindo os efeitos do que tínhamos vivido, com dor de cabeça, refletia sobre as dificuldades daquela gente. Eram vozes que clamavam. E que ainda não foram ouvidas!
Saiba Mais